domingo, 1 de agosto de 2010

Mobília



É que, naturalmente, eu tinha um poder leviano de perder as coisas. Não que eu não as quisesse mais, mas eu tinha um dom de escondê-las de mim quando eu mais precisaria delas. Amanhã não fará sol aqui e eu estarei empacotando minha mobília para a mudança e nada podemos fazer para evitar isso. Ficará o velho colégio onde, por inúmeras vezes, brincamos correndo e nos machucando, assim como fazemos uns com os outros até hoje. Teu olhar me diz adeus de uma forma que me corta a alma, a parte em três. Levo comigo apenas uma das partes.
Ouço a buzina, é o senhor da mudança. Lá se vão meus dias nesta casa que abriga centenas de cenas e reprises dos meus dias, todos enfeitados de fita crepe agora neste inverno frio.
Eu tinha uma grande necessidade de sumir das paredes, dos quadrados, das formas geométricas que nos prendem, mas eu sabia que a felicidade talvez coubesse num quarto.
Tão instantânea, eu não nasci pros limites nem para a espera. Meu passo era longo, mas curto. Sempre cheguei depressa, talvez seja por isso que não me dê tempo de segurar as histórias na mão, me contento com a mente apenas. E varro para todos os lados a poeira que eu mesma promovo do meu movimento, e varrer a casa todos os dias me cansa.
A gente costuma esperar que as coisas melhorem quando resolvemos mudá-las de lugar. Ninguém espera o pior, essa é a verdade. Mas então por qual razão eu ando esperando o pior de mim mesma, como se eu fosse pisar em falso outra vez? É sempre esta insegurança que ferra a minha vida.
A casa nova tem cheiro de algodão doce com tinta fresca, sabe como é? Acho que aqui moravam crianças, consigo sentir a inocência pesando o ar em cima de mim, quase me expulsando desse santuário de paz. Joguei as caixas com cuidado no chão e não quis abri-las. Vocês estavam lá encaixotados, todos vocês! Todo mundo é mobília, é peça, sofá, cadeira e estante. Todo mundo é um pouco de prato e copo. E não me perguntem o porquê disso, experimentem serem trocados de lugar ou serem limpos.
Eu estava me limpando e mudando de lugar, como se esse quadrado de tijolos fosse o responsável pela minha nova vida quando, na verdade, a vida é que a responsável por mim. E olha, sinto muito, mas eu quase não noto isso.
Subi um lance de escada e abri uma porta. Era meu quarto, nos reconhecemos de imediato. Então me joguei no chão e fiz um anjo na poeira. Lembrei-me de estar na praia ouvindo o som das ondas e fazendo anjos e amor na areia, mas isso ficou no verão passado.
O cheiro forte da mangueira do quintal me atraira até a janela. Abri-a, ela ringiu. Respirei profundamente assim como faço quando desejo trazer pra dentro de mim as coisas das quais não quero perder.
Ventava forte, os galhos iam e voltavam até perto do meu rosto. Consegue imaginar a dimensão do vento?
Era essa a minha vontade, ser forte e invisível, um pouco de vento lá fora.
Eu estava há duas quadras de onde nasci, mas aqui desse lado era primavera, e assim seria enquanto eu desenhasse as nuvens e o sol dos dias. Tenho dito.

Um comentário:

Maçao Filho [Delos] disse...

Texto incrível, lindo demais.

Palavras sublimes, tão subjetivamente intensas. Tão bem arquitetadas. Puro encanto.

Tás de parabéns por ele e pelo blog todo em si. De parabéns mesmo.

Um beijo, çao.