É estranho demais ouvir alguém dizer que você possui um dom. Talvez não seria tão estranho se ele fosse cantar, pintar ou tocar algum instrumento. Dizer que você tem o dom de escrever é complicado, todo aquele que fora alfabetizado deveria se pôr neste quadro dos que possuem este dom.
Por vezes me questionei, será isso uma coisa boa? Que domínio é esse que se tem de fonemas que todos proferem sem o menor pudor, apenas me difiro em colocá-los num certo agrupamento, que, tantas vezes, não faz sentido para ninguém, a não ser para mim.
De fato eu não concordo com esse tal dom de escrever em que me atribuem. O ato da escrita é completamente natural àquele que sabe e conhece as letras e domina se quer as mais básicas técnicas do discurso. Entretanto, há tanto o que se dizer que voz alguma seria suficiente.
A análise é feita sem cálculos, sem métricas, não há uma forma ou um parâmetro a ser seguido, eu escrevo da forma em que vivo, tão naturalmente quanto respiro.
O meu dom, ou o que quer que seja, nasce muito mais dos olhos do que propriamente das mãos. Há um radar, uma antena, tudo banhado na mais pura sensibilidade de cada mínimo e minucioso detalhe, seja o dia e todo o seu caos, seja a noite e toda sua melancolia.
Meu pensamento é inquietante, intrigante e, contudo, irritante. Ele não se desliga, não descansa, trabalha arduamente como uma máquina louca que não pára de funcionar, que se questiona a todo tempo e que se maltrata... Ah! Quantas vezes eu preferi não pensar, não me martirizar com o mundo e suas incontáveis questões a serem resolvidas! De fato eu não nasci pára ignorar.
A minha pena não é mágica, o meu transtorno não tem cura e ele me maltrata sempre que pode, por querer dar nomes e títulos à coisas que ninguém no mundo saberia explicar. Eu tento talvez calar a minha voz com as letras, demonstrar no papel às vezes pode ser a única forma de se eternizar toda essa maré de sentimentos e questionamentos.
Escrevo para me salvar de mim mesma, para criar uma válvula de escape onde nada concreto sai, apenas abstrações tão volúveis quanto às teorias que eu menosprezo. Por vezes eu me calei.
Quando eu relutei contra esse “dom”, quando eu disse a mim que não mais escreveria a ponto de chorar, não mais traria o passado de volta resgatando-o nas palavras que eu mesma escrevo, aquelas mesmas que eu tanto me esforço para apagar, então eu percebi que não há dom que domine o pensamento, este dom da escrita nada mais é que a possibilidade de raciocinar e jogar nessas folhas em branco o que de preto e cheio está a mente, é deixar o cérebro para fora, pulsando como o coração, respirando como o pulmão, digerindo cada sentido como o estômago. O meu corpo pensa, escreve, e isto é peristáltico.
Por ora me resta o silêncio das palavras, este é o único ritmo em que sei dançar.
Quem me vê assim, tão quieta, não entende aquilo que grita o silêncio de um poeta.