Era uma canção sem som, um mundo sem céu, um dia sem sol. Era a cor violeta que fugia das flores e corriam pra dentro dos meus olhos, tão perdidos e tristonhos. Eu havia jogado tanto sentimento pela janela e esquecido que o mundo não havia terminado, eu iria usá-los novamente amanhã.
Era um coração fosco, fundo e resistente, e um sopro que fugia dos lábios como um grito de socorro perdido, era como se a minha vida contasse a mim os seus segredos e me tirasse todos os enigmas para que eu não pudesse desvendá-los.
No mundo inteiro era eu e eu, eu por mim. Eu estava forte como uma rocha e viva como uma flor. Tinha os pés nas nuvens e olhos no chão para não tropeçar sobre as palavras; Eu tinha uma voz que até ontem era baixa, mas hoje, ela gritava tão alto e tão gravemente o que eu não aprendi ainda a falar direito. Então tudo passou a ser assim comigo, feito um livro mal acabado, eu estava juntando os cacos e virando um mosaico tão repleto de luz, como um anjo celestial. Possuía nas mãos a cor do mundo e sobre meu peito todo amor que pude um dia dar. O amor havia voltado para mim. Como uma carta que se perde no correio, o amor, às vezes, extravia.
Mas amor é pertencente a um só. Você não pode dá-lo eternamente, porque ele se dissipa e rapidamente gera frutos, e fruto de amor sem dono é fruto velho, podre. Dá-lo a alguém que cuide, regue, é torná-lo fértil, frutífero. É saber que irá resplandecer sobre o tempo os seus novos frutos, e perseverar nas más e boas colheitas.
O mundo não acaba na beira da estrada, há sempre uma linha do horizonte bem mais longe do que os olhos possam ver. Ver algo que hoje parece arruinado não é motivo para tentar reconstruir a beleza do que um dia foi. Não há certeza de que o belo um dia voltará a reinar, mas sim que aquilo que ruiu, um dia também foi belo. E isso sim é eterno.
As asas do vento trouxeram-me até aqui onde estou. Vim cortando tira por tira dos véus que cobrem os céus, e Deus, aquele mesmo Deus, me fez pura palavra rimada, me fez poesia completa para que eu pudesse despir o mundo da seriedade que contém cada palmo de chão.
Eu que nasci gota de orvalho, hoje sou um oceano inteiro. É impressionante a distância entre mim e meus sonhos, agora pouco eu toquei um deles, mas para meu azar, ou sorte, ele está indo embora, como tudo um dia se vai. Apenas o local onde se guarda o que fica permite saber se é melhor continuar dormindo, ou acordar de vez.
Há de ser a vida, esta nossa vida. Há de ser o dedo de Deus, ou de qualquer coisa sobre nós. Hoje entendo porque os caminhos se misturam, vejo os porquês entrelaçados como teia de aranha sobre minha cabeça, e é notória a necessidade de olhar para si, notar o que há em si.
Costumo parar um tempo e olhar adiante, mesmo que isso seja da minha janela. A minha janela é transparente, intocável, ilógica. Dela vejo mais do que colibris e gotas de chuva, eu posso ver gotas de alma e pássaros dispersos, com nome e sobrenome.
Vejo vida. Do momento em que se planta ao momento que se cresce. Vejo vida morrer, como árvore.
Vejo sonho e realidade como frutos. O fio que separa um do outro é como o prazo de validade de um produto, ou quem sabe, o tempo de duração de um fruto.
Passamos boa parte da vida buscando sonhos como frutos pendurados em árvores. Almejamos tanto os belos que ficam presos à copa. Eles são sempre os mais doces. Então lá permanecem, ainda verdes, a nossa espera. Com um pouco de determinação, chega-se ao topo da árvore, e muita das vezes, os sonhos ou frutos, como quiser, já estão podres. Este é o risco. Tudo na vida é baseado em risco. Os sonhos da beira da árvore podem não ser os melhores, e ai está o risco de ser comodista. Os mais inalcançáveis, podem ser vencidos pelo tempo de espera. Mas talvez, tudo não passe de realidade. Sentar embaixo da árvore e esperar que o fruto caia na cabeça, é esperar o fruto podre. Talvez seja por isso que a realidade não tenha lá o melhor dos sabores.
Há motivo entre o fim de um rio e seu curso. Há clareza entre a luz e escuridão. Há uma brecha em forma de palavra transcrita no silêncio. Há um sorriso que mora no fundo de uma garganta que canta. Há certeza entre os pontos de interrogação. Há proeza quando não se vê mais esperança. Há mágoas presas dentro do perdão.
Há sentimentos que se movem com o vento. Há moinhos que esmagam o coração. Há bondade na maldade. Há papel banhado de cifrão. Há virtude no mais fraco. Há pequenas diferenças entre irmãos. Há mágica volúpia num olhar. Há beleza onde nada transfigura. Há doença. Há loucura. Há vontade de amar.
Há palavra na pétala da flor. Há flores que são textos imensos. Há cansaço na vitória. Há registros na história. Há saudade que transborda o meu viver. Há um ano que demora. Há um beijo que não chega. Há muito de mim em você.
Fechei atenta e fortemente os olhos. Eu quis navegar para além da minha realidade, realidade esta que, por vezes, me doía tanto, como se houvessem espetado um punhal em minha alma por eu ter cometido o crime descompensado de amar alguém.
Eu estava só e tão fraca, pela primeira vez os olhos abertos nada me mostravam, eles revelavam apenas o vácuo que era o meu derredor, e a culpa de todo o vazio era da minha insanidade, a insanidade de amar alguém.
O mundo não tinha mais som. E eu gritei - Ah, e ninguém me ouvira!
Sem toda a razão eu tinha os olhos fechados para ver o meu sonho de perto, eu podia tocá-lo, ver cada célula, mas ele não podia ser meu, como o sol, de fato, não pertence à Terra. Este amor era como o sol, eu vivia porque ele existia, mas não podia me aproximar demais, pois este mesmo me mataria.
Foi então que um clarão tão forte parecia cegar-me, mesmo com os olhos fechados. Doce ilusão, quem nunca teve uma?
De olhos fechados eu vejo tudo que não se vê, eu transpiro todo veneno do mundo como se meu corpo abrigasse tudo que quis ser e não fui, eu não fui o seu amor ainda, você abriu as mãos e eu cai. No chão.
Não, não sofri pela queda. Sofri por não mais tocar suas mãos. E não foi por nenhum abandono, foi por saber que mesmo aqui onde estou, ainda estaria ai contigo.
Desde então encontro-me partida. Em cacos, desmontada, como um velho jogo antigo.
Não havia mais ninguém para jogá-lo. Na verdade, muitos jogadores se submeteram a tentar, mas todos percebiam que neste velho jogo faltava uma peça.
A velha peça de amar alguém.
O ato mais ilícito, delicado, estúpido. A fonte mais incoerente de se ter valor, o momento em que mais nos aproximamos de Deus, do céu.
Bem, queremos apenas poder tocar o Sol, por tanto vislumbrá-lo, e por isso perdemo-lo.
Nem sempre o toque e a presença te provam a proximidade entre um par de pessoas e um único sentimento. A distância também protege do sol. E aquece.
A saudade vem alada lembrar-me de tudo que vivi. Hoje nesse dia quente e de lua bonita, eu debruço no batente da janela – só há som de orvalhos minuciosos que caem e batem em minhas pálpebras – tudo está mais belo nesta noite que desce e que se esconde na vida que eu mostro, na significação de ser o que sou.
E por ser o que sou que hoje estou aqui.
Lembro-me claramente de um menino que me assombrava e ao mesmo tempo dava-me a mão para que eu não tivesse medo. Do carinho de uma mulher que daria a vida por mim sem ao menos ter visto meu rosto. Das palavras de um homem que sabiam chegar até mim como uma ponte entre um cérebro e outro, mesmo sendo completamente em vão pensar assim. Era um só coração em corpos distintos!
Dei então meus primeiros passos, meus tropeços, minhas quedas, falei as primeiras palavras, descobri carinhos e sentimentos diferentes. Tive os melhores amigos passageiros, sabe aqueles rostos que você vê em foto e de repente – um surto apenas de memória – de repente você se transporta aos risos mais sinceros e às brincadeiras mais divertidas. Com um tempo eu os esqueci, confesso que deixei de lembrar os nomes de imediato, mas lá estavam os meus amigos, girando numa roda de ciranda em minha mente, e eles ainda giram, a gente ainda brinca pelo tempo que passa sem a menor graça.
Eu aprendi muito. Cada dia eu aprendo algo novo que coleciono nesse corpo que, às vezes, parece tão sem importância – como neste momento aqui, vendo a lua tão bela no céu e tão grandiosa diante de mim – mas então, eu recordo-me que há um mundo em mim, que minha alma é paisagem perdida, é um oásis esse meu coração! As minhas palavras são como um córrego de águas frias e cristalinas, os meus gestos como um relevo desordenado e meus olhos como o horizonte que recosta no mar, tão cansado de ser eterno.
Diante disto vejo o quanto sou diferente agora. O quanto plantei e semeei durante todo esse curto e longo tempo. As folhas no calendário são inúmeras, as que caíram das árvores em tantos outonos, incontáveis. Eu fui mestre na arte de sobreviver do meu próprio jogo, a cantar o meu próprio enredo e a chorar as minhas próprias ruínas, de coisas que eu mesma ajudei a destruir. Eu construí tanto nesse período. De pequenos muros desajeitados numa sala de aula à amizades que levarei para vida inteira. Hoje sou grata a mim, também, que não desisti de lutar e me impor, e de buscar a força e a verdade que grita em mim, não para revelar aos outros, mas para deixar que ela me revelasse.
Lembro-me de quando tive medo de não ser feliz novamente, como se a felicidade tivesse um custo, um nome, apelidos e endereço... e ela era minha hóspede que, até então, vivia dentro do coração de outra pessoa, eu chamei-a para mim, porque a nossa felicidade deve ter nossa cara e nosso nome, e deve morar apenas dentro de nós, independente das circunstâncias. Dar a felicidade que há em si para outra pessoa, é arriscar perdê-la, porque pessoas são como pássaros imigrantes e felicidade deve ser como uma âncora eterna.
Hoje vejo o quanto já olhei nesta vida. Quantas vezes nos olhos me bateu forte o coração? Quantas vezes perdi a vergonha ao olhar fixamente e deixar que uma imagem se perpetuasse na minha lembrança, para poder apagar as saudades que em mim havia?
O quanto vi gente chorar, sorrir, brincar, morrer, nascer, cair, perder... Quantos verbos ainda cabem dentro dos meus olhos?
E é ai que a magia de nascer, todo ano reaparece. Nada muda. O dia vira, a noite que está lá fora cai. As estrelas brilham como todos os dias, mas hoje... hoje é dia de celebrar a minha vida.
E eu tenho o prazer em poder sentir que não estou aqui perambulando, nem tenho a missão de ver a banda passar e aplaudir.
Eu me desfaço por onde passo, e sei que um dia eu também hei de ruir.
O vento estava em sua direção. A menina corria contra ele, deixando voar todos aqueles cachos, escuros em cima e mais claros nas pontas, bem delineados como se fossem feitos com as mãos. Mãos de Deus.
Havia uma borboleta quase ao seu alcance, era ela que a menina almejava tocar, saltava e corria, pegava impulso, mas era em vão. O dia estava completamente azul, havia uma ou duas nuvens bem claras no céu, uma se parecia com uma jarra de suco e a outra uma maçã. Era uma manhã como há muito tempo não se via. Seu vestido lilás não podia sujar – era essa a recomendação de sua mãe, que sempre a vestia como uma princesa pela manhã.
A menina sentou-se debaixo de uma árvore, acredito ser uma mangueira. Seus cachos estavam caindo pelo rosto e se umedeciam com o suor. Uma respiração ofegante, de tanto correr e pular, correr e pular e repetir essa seqüência incansavelmente a fim de alcançar a borboleta tão esperta e arisca. Sua exaustão logo a fez descansar as pálpebras, por um instante apenas. Sentiu então um toque, como se um pedaço de nuvem do céu houvesse caído em sua bochecha. Era ela! A borboleta que não tinha nome, que aproveitou a sua distração para repousar. Então a menina abriu devagar os olhos, e continuou imóvel. Ali estava ela, doce e colorida, a mais bela de todas as borboletas até então vistas por ela. Mas ela não podia tocá-la, caso contrário, ela fugiria.
A menina não conseguiu conter toda sua inquietação e moveu uma de suas mãos. Era apenas um abraço, oras! Ela voou. Está no céu, ao lado do jarro de suco e da maçã.
Então com a cabeça baixa e os olhos ainda espantados com o que havia acontecido, a menina cheia de cachos sentiu necessidade de continuar correndo. Tudo aconteceu tão de repente, como se a asa da borboleta ainda estivesse pousada sobre ela, fazendo cócegas.
Ela correu, correu... a menina corre até hoje. Jamais se viu aquela borboleta por aqui, há pessoas que dizem que, de vez em quando, outras por aqui voam, mas a menina não acha mais graça em caçar borboletas.
O desejo de ter às vezes compromete nossa visão. A menina já não via mais nada, a não ser a noite escura e as estrelas, todas com nomes, no céu. Havia também a lua, era linda e iluminava o quarto enquanto a menina se deitava noite a noite, toda noite que se pegava pensando no vôo da borboleta. Então ela sonhava, e era ali que o abraço era dado, que ela tocava em suas asas e coloria todo seu corpo, virava borboleta também. A manhã sempre chega, talvez não tão bela como aquela manhã... Aquela já não existe mais.
A menina já não existe mais.
Hoje há um rastro de lembrança, há o doce deleite da dança de uma borboleta que não volta.