Carga falha. Palavras falhadas, palavras faladas, apagadas. Um breve rascunho de uma breve história contada por mim.Prendia fielmente por todas as noites meus olhos no espaço, visando encontrar as saudades que eu sentia um segundo após deixar seus braços. Ia pelo caminho passando e repassando cada segundo, como se eu pudesse reviver minha própria vida. Aquele caminho amarelo era tão curto para me trazer de volta. Em minha volta eu o via desde perto dos meus braços, até no alto das estrelas, sempre calado e cheio de palavras, sempre mudo dentro de seus longos diálogos. E eu sempre ouvindo demais as coisas que ele não dizia. Então eu anotava. Graças à ausência de seus sons eu escrevia, trazia para as minhas mãos tudo aquilo quanto fosse mudo e gritasse. Trazia para as palavras o que você trazia para mim em silêncio. Até o dia em que houve barulho. Eu nada ouvi e ai doeu. Quando as palavras começavam a saltar e a serem escritas pela sua boca de uma forma não decodificável, inaceitável, as minhas letras emudeceram. Pela primeira vez ficamos os dois em silêncio. Então eu andei até chegar em casa. Sozinha. Abri o caderno e o peito e tentei corrigir o que eu construí da parte mais profunda de mim. Foi tudo tão raso, que meu alicerce não foi necessário. Quando reli tudo quanto já havia escrito em uma noite, pude entender os grandes erros ortográficos que cometi. Que comprometi. Ah, tanta quebra de paralelismo semântico, tanto desenho bobo substituindo partes importantes que nos faria uma bela história. Então fechei meus olhos e abri meu estojo. E lá estava ela – não se misturava com as demais. Eu havia usado incessantemente desenhando corações espalhados em folhas em branco. A tinta da caneta não havia chegado ao fim, estava apenas falhada. Então eu coloquei-a de volta no estojo e escolhi uma qualquer que fosse, e comecei a escrever. Mas lá estava ela, presa, aguardando outras histórias serem escritas na sua frente, na sua fronte, na sua vez. Não era a sua vez. Mas é certo que ela ainda me salvará um dia de algum apuro, me servirá para escrever o ponto final de tudo que eu mais penso em escrever. Talvez eu não pense mais. Talvez eu seja uma louca pós modernista que não gosta de pontos, mas tenha vício em acentuação. “Toda proparoxítona deve ser acentuada”. É a primeira da regra das acentuações, a primeira na vida das palavras. Depois dela, há a possibilidade de não haver mais acentos. As pessoas também acentuam as primeiras em suas vidas, a regra também vale para mim. Era então a hora das horas passarem, e elas passaram, meu bem. As horas correram e cortaram os dias quase decapitando a minha cabeça. Eu me perdi nos dias, nas ausências e nas presenças. Eu descobri um mundo com palavras tão simples que chega a ser belo. Eu aprendi a não usar borracha, a fechar os olhos antes de escrever para não mais me prender nas linhas retas. As palavras não têm importância pela forma, mas sim pela significação. A diferença entre honpont e amor fica apenas restrita numa velha escritora tão menina, que faz associações insanas a fim de concluir pensamentos abarrotados de sonhos. A verdade é que eu aprendi a importância do meio sobre o conteúdo. De nada vale uma boa história sem sua esferográfica. De nada me valeriam as palavras se eu não as endereçasse para certos ouvidos. Hoje outros ouvidos me ouvem, outros olhos me lêem e me tomam inteiramente. Há uma outra buzina, um sol diferente, um outro país, outro continente, um outro outro. Um mar cortando a velha proximidade, que a gente faz de poça e se banha. Vamos aproveitando outras cargas, porque o que nos fere é a sobrecarga de nós mesmos. Hoje não te sinto, nem te vejo, mas te escrevo na finalidade de que nunca me leia, porque, assim como as horas, eu passo rápido demais e já não tenho medo dos garranchos que vou deixando. Se posso te guardar num verso antigo, que ele seja o mais lindo e o mais longe do meu ideal.
Antes de todo amanhecer eu me encontro, vestida de estrelas, com os olhos fechados ao ponto de que tudo posso ver, até eu mesma. Dos sonhos partem toda a parte do horizonte que eu caço, cato, busco como se eu pudesse tocá-lo com as mãos. A verdade é que não há nada mais terrível que o horizonte, porque quanto mais você se aproxima, mais ele se afasta. É duro ser um horizonte pra si mesma.
Desta forma eu encontro, numa série de palavras, o meu contraponto. Ao mesmo tempo em que eu escrevo tudo com essas mãos ainda tão frias, eu tento apagar coisas tão marcadas nas linhas que se fixaram ao ponto de serem intocadas, ocupando espaço demais em meio às outras palavras. É um negrito tão gritante, que me tortura em saber que um dia grifei essas palavras com tanta vontade de que elas fossem eternizadas.
Então você se encontra numa noite como essas procurando sinônimos para continuar viva. Você olha em cada esquina desses becos sem saída que são seus dias e se esquiva dos fatos como um morcego da luz. Não há descanso, meu bem, mas às vezes os dias ninam as noites.
Como se não bastasse a insônia, ainda preciso montar esquemas de esquecimento e arquitetá-los para serem infalíveis. É uma luta diária, é tão duro como ver brotar em você um espinho, perfurando sua carne, mas te fazendo um pouco menos inofensiva ao toque dos outros. Então eu me encontro segura ao ponto de não mais esperar que as dores e os sonhos resolvam entrar em comum acordo. Dessa forma eu descanso, em alerta, eu nunca durmo dentro de mim, não é seguro. Há um mar profundo nos meus sentidos, há uma areia movediça nas tuas defesas, haverá sempre uma linha entre nós que, ao ponto que nos separa, só nos une. Só não espero nenhum toque porque eu sei tanto sobre medos e jogos que sempre dou um jeito de me esquivar. É duro aceitar que você afasta as coisas. É inútil saber procurar sonhos dentro de outras pessoas, porque eles se vingam de nós. Não há vingança pior que a de um sonho não realizado.
Por ora, o importante é não esperar, planejar, arquitetar. O mais bonito dos sonhos é o fato de eles serem involuntários e espontâneos. O mais eterno de um sonho é o fato dele acabar, é a memória de quando se acorda e se lembra intactamente daquilo que só o travesseiro pode presenciar. O duro dos sonhos é que se precisa dormir para encontrá-los.
Ah, e esse café me dá insônia.
Enquanto a gente cresce, desce, foge ri e chora. Enquanto a gente pinta, mente, esquece, finge e rola, tudo parece nascer subir e descer na sua hora.
Enquanto a gente planta a floresta de plantas daninhas, a gente rega aos poucos o futuro que descansa, pelas beiradas desse presente que levanta tão depressa antes mesmo de eu piscar.
Enquanto o sol brilha lá de cima, veja só sua colina de maldade triunfar! Enquanto a mão for curta para a ajudar nessa labuta a gente há de se ferrar! E quer saber? A gente gosta.
Enquanto a voz se ergue em pró do horizonte é possível ver o Condor lá de cima a voar, a gente pega carona em suas asas, as mesmas asas que cansamos de cortar. E quer saber? A gente erra.
Enquanto a gente desliza pelos lábios salgados do mar, o mesmo mar que a gente bota o futuro pra boiar, fazemos do agora todo nosso bem maior, cortando qualquer laço que nos prenda e que dê nó. E quer saber? Livre a gente ama melhor.
Minha vida anda meio descontextualizada, tanto que meu cardápio esse mês foi um tanto indigesto. Minha nossa, está tão tarde que o sol já brota nas lacunas da minha persiana!
É que os dias andam um pouco negros e com sabor de algo que eu não costumo comer. Gengibre, já tentou? Não, eu não costume gostar dessas coisas não-doces.
Ultimamente. Mas que maldita classe gramatical acolhe o ultimamente! Ultimamente eu só tenho tido olhos para espelhos turvos que refletem essa pessoa que me tornei. Existe uma queimadura no meu rosto que só eu vejo, do lado onde tu costumavas beijar. Só eu sei o quanto ela me dói!
Ultimamente eu me encontro sentada numa grama verde onde eu busco paz, onde eu tento de qualquer forma pensar apenas na grama verde, já que ao olhar para os lados, veja! A grama verde também faz parte de nós.
Sinto falta de nós. Sinto que aos poucos tu cortas o resto dessa casca de ferida que eu me tornei pra ti. Sei tão bem das tuas dores que não tive coragem de te curar, por saber que somente elas te fariam ser a pessoa que és hoje, graças a mim e a minha covardia. Hoje te aplaudo aqui desse chão imóvel, deitada, inquieta, tão quieta... Te vejo crescer como um planta, te rego de lágrimas todos os dias como se eu pudesse te ver tão grande que não terias jeito de fugir e terias que acabar invadindo minha casa com seus galhos e folhas. Ah, que pretensão a minha.
Você se tornou uma miragem, mas não tão bela. Nada de rio no meio do deserto, oásis perfeito, maná. Nada disso. És para mim hoje como um pão com mortadela na hora da fome, um Rivotril na hora da insônia. Eu não vivo sem esses meus vícios nos quais você vive inteiramente.
Ultimamente, troco os dias pelas noites, mas pago juros. Troco roupas e saio pelas ruas, mas ando nua. Enfraqueço-me de solidão, mas me abrigo tão fortemente dentro de mim mesma. Pasmo com o canto dos pássaros porque já não ouço vozes com freqüência.
A verdade é que, ultimamente, eu ando perdida num mundo que eu não canso de achar, descobrir. Cada passo, pé com pé, um na frente, outro atrás, cada andar sincronizado vai me deixando um pouco onde piso, e é ai que eu aprendo a seguir nos dias de sol escuro.
Porque o sol é dádiva, os dias são como marés. Amores são pássaros sem rota e meus passos são meus pés, apenas eu, falando um pouco de mim para o mundo.
Nunca temi o rumo nem o calor. Faço sol e sombra com o meu sorriso.
Eu tinha um bando de verdades que voavam para longe de mim, as minhas tão amadas borboletas, com suas asas coloridas, tão leves. Tão pesadas de mim.
Percorriam olhos, lugares, espaço, não deixavam rastros, me espalhavam por ai discretamente entre uma leitura e outra. Eu vivia nas palavras espalhadas pelas suas asas.
Existiam coisas das quais eu nunca saberia dizer, por mais que eu pensasse exatamente em como elas são, em como os olhos percorrem os outros, como eles se buscam, como eles se esbarram, como o tempo os perde. Eu não sei falar de olhos, acho que eu nunca acreditei em olhos que não fossem os meus. Mas a verdade, voadora ou não, escapada ou não, secreta ou não, é que essa vida sempre me deixou na beira do mar da janela, sempre olhando um horizonte paradisíaco de uma cidade suja, sempre me proporcionou as músicas tão mais lindas dentro dos ônibus cercados e abarrotados de gente. Eu sabia que no simples eu era plena, nunca tive essa tamanha intimidade com o simples como tenho agora, como venho aprendendo que, de fato, as borboletas não vão tão longe carregando as minhas, de fato, não tão verdades. E quem seria eu se não uma não tão verdade?
Era um desequilíbrio harmonioso este em que eu me achava, na verdade, me perdia! Era delicioso trepidar no vento, ameaçar cair... Perceber a leveza das palavras que sempre voaram comigo, na verdade, bem verdade, é que elas eram as responsáveis por me fazer voar. Às vezes eu batia na janela da intolerância, e outras eu tive que desviar das portas fechadas, há tanta gente que se esconde em teorias dogmáticas da sua própria vida, fecham-se ao simples e almejam uma felicidade semi pronta, estereotipada, como um prato congelado que fica três minutinhos no microondas e... Ah! Ai está sua felicidade instantânea, perfeita... Mas alguém precisava dizer às pessoas que o prato acaba. Que da mesma rapidez em que chega, ele se vai, e que felicidade é essa que tanto buscamos e que se vai? Felicidade se vai?
E então as palavras podem responder a mim que ela não existe. Que é tolo quem perde, entenderam? P e r d e a vida em busca de perfeição, de infinidade. O que te torna feliz é o distrair. É o deixar, levar. Note-se. Olhe pra si e tente ver o mundo e, se esse mundo não é lindo como queria que ele fosse, conserte a si mesmo e quem sabe teus olhos estarão tão limpos que poderá ver por trás da fumaça uma nuvem, um sol, um dia quente, a chuva, as flores... Quem sabe seus olhos estarão tão limpos que verás teu coração vazio e procurará guardar esse mundo dentro de si. Não o torne feio, não se encha de algo que se denomina feio. Nós somos a felicidade que buscamos, dentro de uma certeza de que não somos meias verdades.
Eu continuo aqui me enchendo aos poucos de palavras, ou talvez me esvaziando destas... As borboletas voam e me deixam por ai.
Lembrar, às vezes, dói. Pois bem, estava doendo tão brutamente agora quanto um soco na cara, uma mordida no lábio, uma torção de tornozelo. Tragam-me torniquetes, por favor? Um remedinho que me tire a memória e me traga sono, também...
Lembrar, às vezes, angustia. Além de doer, perfura. Mistura o pouco de lucidez que eu tenho e vai até o fundo da minha loucura, lá eu me descubro um alguém que já não me sorri no espelho.
E quando se lembra de um velho amor, dói, perfura e voa. A gente não cura, a ferida fica ali quieta, exposta com suas devidas moscas por cima. Perfura ao buscar alguém que já não simboliza o amor dantes, alguém que já não merece ser chamado de amor, não por qualquer falha humana que seja. A verdade é que o tempo nunca falha, mas também não apaga por completo.
E voa. Como nunca, como agora pouco voei tão longe que perdi a noção de espaço. Lá estava eu, burramente te esbarrando pelo braço, e tu pediste perdão como quem esbarra com um desconhecido na rua, tu já não sabes mais sobre quem eu penso.
Lembrar às vezes soterra. É tanta coisa vivida, tanto passado que nos cobre. Mas cuidado, quem está sempre coberto pode estar morto.
Eu regava todos os dias essa planta carnívora que eu plantei, mas que despropósito! Quando me vem a vontade de sumir a planta e morde aos poucos e eu sinto dor. Eu sou tão humana quando sinto dor! E eu estou sentindo dor agora e a culpa é minha que insisto em ver fantasmas por ai. Eles mentem, tão repugnantemente que eu me recuso a chorar de novo lágrimas envelhecidas do lixo que eu enfeitava e que, no fim, era uma puta mentira! Teu doce vôo de beija-flor onisciente não me encanta de forma alguma, por saber que, ao voar pra trás, tudo que vivemos foi uma bela mentira vivida a fio por mim.
Eu já não sei se sou capaz de regar as velhas plantas, nem de colorir o velho quadro, a verdade é que eu espero que cada dia passe mais depressa, eu tenho medo de cair no antigo jogo de novo... E eu espero, espero, eu nasci pra odiar essa espera.
Deixe que o acaso mostre toda beleza dos nossos dias, ando pelo mundo deslizando pelo seu chão tão quente, divertindo gente, eu sou a alegria que às vezes me falta.
Deixo-me sentir que hoje eu sinto muito pelo passado, eu deixo de olhar para o lado para olhar para trás, e como isso tem me feito mal. Sinto que agora, mais do que nunca, eu preciso manter meus olhos abertos e fechá-los para a ilusão, eu devo seguir em frente para manter a minha meta de chegar ao fim do dia e poder sorrir pro espelho.
Ando meio cansada, é verdade. Acho que desgastei minha própria vida, até minhas palavras parecem as mesmas, às vezes sinto que já escrevi tudo o quanto seria possível, e é nesta hora que me vejo tão pequena, apenas uma interlocutora frágil que nem sabe ao certo a verdade das suas rimas.
Preciso que me surja uma nova correnteza, que me mostre uma nova beleza, e eu deixarei que esta me carregue para onde quiser. Já não tenho pressa, mas estranho toda essa calma. Hoje se eu pudesse, de verdade, eu levaria os meus sonhos para passear pela rua, mas não esta aqui, desta aqui eu já me cansei.
Quantas vezes ainda eu vou precisar fechar meus olhos pra te enxergar? Eu já não quero sentir algo por alguém e me tornar mais um alguém que não passa de um ninguém. Eu me tornei um simples ninguém.
Mas se queres saber como me sinto, olha lá pro infinito, eu me sinto parte daquele horizonte que chora.
Doce e ínfima. Livre e completamente restrita. Tão viva e breve como a chuva lá fora.
É que, naturalmente, eu tinha um poder leviano de perder as coisas. Não que eu não as quisesse mais, mas eu tinha um dom de escondê-las de mim quando eu mais precisaria delas. Amanhã não fará sol aqui e eu estarei empacotando minha mobília para a mudança e nada podemos fazer para evitar isso. Ficará o velho colégio onde, por inúmeras vezes, brincamos correndo e nos machucando, assim como fazemos uns com os outros até hoje. Teu olhar me diz adeus de uma forma que me corta a alma, a parte em três. Levo comigo apenas uma das partes.
Ouço a buzina, é o senhor da mudança. Lá se vão meus dias nesta casa que abriga centenas de cenas e reprises dos meus dias, todos enfeitados de fita crepe agora neste inverno frio.
Eu tinha uma grande necessidade de sumir das paredes, dos quadrados, das formas geométricas que nos prendem, mas eu sabia que a felicidade talvez coubesse num quarto.
Tão instantânea, eu não nasci pros limites nem para a espera. Meu passo era longo, mas curto. Sempre cheguei depressa, talvez seja por isso que não me dê tempo de segurar as histórias na mão, me contento com a mente apenas. E varro para todos os lados a poeira que eu mesma promovo do meu movimento, e varrer a casa todos os dias me cansa.
A gente costuma esperar que as coisas melhorem quando resolvemos mudá-las de lugar. Ninguém espera o pior, essa é a verdade. Mas então por qual razão eu ando esperando o pior de mim mesma, como se eu fosse pisar em falso outra vez? É sempre esta insegurança que ferra a minha vida.
A casa nova tem cheiro de algodão doce com tinta fresca, sabe como é? Acho que aqui moravam crianças, consigo sentir a inocência pesando o ar em cima de mim, quase me expulsando desse santuário de paz. Joguei as caixas com cuidado no chão e não quis abri-las. Vocês estavam lá encaixotados, todos vocês! Todo mundo é mobília, é peça, sofá, cadeira e estante. Todo mundo é um pouco de prato e copo. E não me perguntem o porquê disso, experimentem serem trocados de lugar ou serem limpos.
Eu estava me limpando e mudando de lugar, como se esse quadrado de tijolos fosse o responsável pela minha nova vida quando, na verdade, a vida é que a responsável por mim. E olha, sinto muito, mas eu quase não noto isso.
Subi um lance de escada e abri uma porta. Era meu quarto, nos reconhecemos de imediato. Então me joguei no chão e fiz um anjo na poeira. Lembrei-me de estar na praia ouvindo o som das ondas e fazendo anjos e amor na areia, mas isso ficou no verão passado.
O cheiro forte da mangueira do quintal me atraira até a janela. Abri-a, ela ringiu. Respirei profundamente assim como faço quando desejo trazer pra dentro de mim as coisas das quais não quero perder.
Ventava forte, os galhos iam e voltavam até perto do meu rosto. Consegue imaginar a dimensão do vento?
Era essa a minha vontade, ser forte e invisível, um pouco de vento lá fora.
Eu estava há duas quadras de onde nasci, mas aqui desse lado era primavera, e assim seria enquanto eu desenhasse as nuvens e o sol dos dias. Tenho dito.
Estava ali, dentro daquele quarto calado e caótico, eu, calado e caótico vendo a noite ruir. Sentei-me na beira da cama como se meus pés não tocassem o chão, e sim as águas mansas de um mar construído por mim, era noite de lua nova e não havia sequer um maço de cigarros no meu criado mudo. De fato a permanência do clima naquela noite me intrigava, eu estava a poucos segundos de uma cena tão intrigante como o clima da noite, ela iria embora depois de longos anos de espera. E ela não era a noite.
Liguei o rádio e esperei que tocasse algum blues que não me lembrasse quem fui, eu que corri por tanto tempo em busca de me livrar de mim como se a minha velocidade corporal deixasse minha alma para trás, e quantas vezes eu nem quis ter alma, e quantas vezes como essa agora eu me pergunto: Quando voltará a minha alma, se é que tenho uma?
São duas da manhã, acabo de ver o relógio. A cidade está toda em movimentos rotativos – resultado da vodka que ando bebendo – na verdade os amores urbanos estão todos lá fora se amando lentamente antes que se acabem, porque eles acabam e não é justo que eles não saibam disso.
Estava eu, olhando pela janela e ouvi um passo estranho e uma respiração ofegante perto dos meus ombros. Ela não era a noite. Ela tinha um cheiro característico e único, que eu sentiria aqui ou em Roma, aqui ou no inferno. Pegou duas malas cheias de mágoas e mentiras e me fez carregar até a porta, sem olhar em meu rosto. Ao tocar em seu antebraço senti sua repulsa e o seu cheiro veio parar dentro de mim como a fumaça do meu cigarro, mas eu já não o posso sentir livremente, e ele se torna parecido com a fumaça do meu cigarro que, mesmo sendo liberada por mim me mata aos poucos. Ela me matava aos poucos e nem sabia.
Então eu levei-a até o elevador e esperei aqueles dois minutos mais longos que se pode haver. Falei – espero que faça boa viagem – ouvi apenas uma respiração decepcionada. Eu já não possuía vocabulário algum para descrever esse momento então vou deixar as minhas reticências nessa parte do meu discurso (...)
Vi um taxi convencional amarelo levar meu sonho para qualquer hotel urbano, dessa cidade de amores urbanos que eu nem sei o nome, de fato, eu nem sei por que estou nessa cidade a não ser por aquele maldito trabalho que arrumei.
Agora são quatro da manhã. Ray Charles toca uma canção que eu não me lembro o nome, mas que me lembra você em cada nota, e são apenas quatro da manhã e lá fora amores urbanos começam, o mundo gira circulando e circulando como o relógio da minha parede tão cansado de me ver vigiá-lo, como se o girar dos ponteiros pudesse se inverter e fazer todo o tempo voltar, e te fizesse voltar junto com manhã passada, mas ainda é noite! E ela não era a noite.
Debrucei novamente na janela – já estava cansado de me manter sentado e inerte – fui ver estrelas. Olhei-as calmamente e por um momento perdi-me na noite, como um anjo. Ora, eu estava longe de ser um anjo, mas foi assim que eu me senti. Só não pude voar por pouco, de fato tive medo da altura da minha janela e o medo sempre foi uma merda na minha vida. Voltando às estrelas... Bom, lá estavam elas, sós e unidas como um bando de ovelhas guiadas por um pastor. As estrelas estavam lá guiadas por, sei lá... Deus! Pela primeira vez eu senti a sua paz dentro da minha veia aorta e tudo aquilo repassava ao meu corpo um desejo de não mais sofrer.
Eram cinco da manhã, e nessa estação o sol aparece mais cedo. Mas ainda era noite e ela não era a noite. Então eu não resisti a mais um gole e deitei-me com as janelas abertas para observar um vento matinal que já podia levar as minhas cortinas brancas até a outra parede do quarto.
Desliguei o rádio e, de repente, senti uma desesperada vontade de olhar a janela novamente.
Lá estava ele – grande e poderoso sol – e eu, tão branco, não o notava mais por tamanho egocentrismo, o meu brilho me bastava e meu peso me ancorou todo esse tempo, mas pela primeira vez depois dessas horas que ela se foi eu me senti livre, leve.
Descobri ao olhar o céu que a noite se vai como ela, mas que a vida é sentida em cada raio de sol e, quando se vive, no mais verdadeiro e amplo sentido que esse verbo possa ter, a noite vem para trazer o descanso, e quem sabe... Me trará ela! Esse meu pensamento coloriu em minha mente a idéia de que a vida é continuidade, e eu já não tinha mais fígado ou ilusões para lapidar esses “pra sempres” que nunca chegam.
Mas, de fato consumado, perante qualquer pieguice de infinito, ela sempre será minha noite, embora já não mais em carinhos, apenas em sonhos.
De tanto sentimento, tenho rios incontestáveis de lágrimas frouxas e jardins imensos de sorrisos, largos e espalhados, recebendo todo ar arejado da humanidade. Tenho sido carne viva de verdade, meu coração tem andado na palma da minha mão e ele tem luz, tem voz e sabe falar.
Por haver perdido tantas vezes o caminho, constatei que às vezes perder-se é encontrar-se.
Gosto de falar de mudança por ser eu mesma o tempo lá fora: efêmero, fugaz.
Fazia um sol caloroso e, de repente. Ponto e vírgula. De repente! Chuva no chão. Era eu, sinto. Eu havia chorado novamente.
Tenho em mim o despertar provisório dos sonhos. A realidade me cansa e me dá o abrigo nada seguro do ilusório. Eu me viro entre a terrível limitação de não poder ser sonho também.
Às vezes o que dói na realidade é o que se constrói com as próprias mãos, são os rumos que nossos próprios pés guiaram, os personagens que somos e nós mesmos forjamos, dói saber que não podemos ser um só a todo instante. Porque o homem é a mistura dos sentidos e os sentidos se misturam e se distribuem igualmente entre os homens. Em alguns, muitos sentidos adormecem, mas se há de convir que na vida não importe quanto sentidos se tenha, às vezes as coisas não farão sentido. Eu e todos os eus então chegaremos a conclusões diferentes.
Às vezes peso tanto que não me sustento, outras pareço tão leve que não me prendo. Outras vezes digo incansavelmente tudo que minha alma abriga, outras o silêncio me é conveniente. Ora sinto e ouço som de estrelas, ora não tenho inspiração para escrever uma linha se quer sobre mim. Porque às vezes adoro ver-me perdida em meio a mim e aos outros, e o desconhecido me é excitante em meio à mesmice.
Vejo e enxergo com os olhos, e toco lábios apenas com o coração. Não me deram linha reta para seguir, nem ao menos orientação. Jogaram-me nesta cova viva e aberta, e mandaram-me fugir, e cá estou na luta. Porque há em mim metade dos segredos do mundo, e a outra metade, não me é mais segredo algum.
Eu vou estar de pé quando o inverno chegar ao fim, e disso não tenho dúvidas. Andei fincando raízes para poder esperar o vento passar, o meu próprio sopro.
Vou estar pronta para quando for a hora de te deixar partir, terei a certeza do teu caminho ao olhar pra trás, eu sei, eu sei tanto e isso só traz a minha dor.
Mas veja, eu descolori um mundo inteiro para disfarçar a minha tristeza momentânea, mas eu adoro as cores que ando usando para repintá-lo. A fraqueza é apenas uma circunstância, perpetuá-la é apenas uma condição, se submeter a ela é apenas engano. Eu não vejo mais saídas por becos estreitos de saudades, hoje vejo apenas ruas largas, mar, eu vejo o mar! Ah, quanto tempo!
Eu vou estar de pé quando a primavera apontar no horizonte. Eu terei secado as minhas lágrimas transparentes, invisíveis. É em meio às flores que eu vou buscar o meu esquecimento, a minha idolatrada amnésia, o meu fardo perdido em meio aos dias.
Vou ver despontar as flores e os teus pés pelo caminho, já não terei motivo algum para seguir teus passos, como ando fazendo ainda.
Mas veja, está tudo tão colorido que eu me camuflo nas flores, e eu adoro colhê-las!
Sinto que o ar nunca foi tão leve, e eu o prendo dentro de mim como forma de me reabastecer de uma leveza que eu perdi ao te perder. Entenda, eu já não sou a mesma, e de fato sei que o mundo inteiro mudou. Hoje, ao olhar para mim, no sopro de cada sim, uma certeza: nada restou.